Da ideia de«Universidade» e o acesso ao Saber…

O que de mais singular seguramente existe na nossa condição humana é a dimensão noosférica (isto é, aquela em que se revela e afirma o conjunto das capacidades superiores ou nobres que, ontogeneticamente, nos diferenciam e distinguem) e o dinamismo sapiencial (cultural, lato sensu) em que ela se configura, tanto em suas vertentes fruidora e criativa como em seus vários modos e registos manifestativos (as Belas Artes, as Belas Letras, as Humanidades, a Religião, a Filosofia, a Política, a Educação, a Ciência, a Técnica, a Tecnologia…), como, ainda, em sua estruturalidade sociosférica e conformação orgânica e funcional: desde a instituição escolar (com a sua referência e símbolo maior: — a universidade!), passando pelas academias, pelas comunidades científicas, pelos centros de reflexão, investigação e pesquisa, pelas escolas, círculos, correntes ou movimentos de ideias, etc.

O patamar mais elevado e mais complexo do processo da antropogénese situa-se inderrogavelmente a esse nível e, no plano social e político, não deixa de se consubstanciar, em larga medida, para o bem ou para o mal, na questão nuclear do acesso, ou não, ao ensino superior, na frequência, ou não, de uma universidade.

Mas importa clarificar, ao menos sinteticamente, o entendimento que me parece dever ser dado àquilo que representa e significa esta multissecular instituição.

Logo e lá bem desde a sua aurora eclesial e medieva, sob a designação de studium generale, a universidade foi concebida, pensada e programada para ser a privilegiada instância, caracterizada pela universalidade da criação, da invenção e da busca do Saber e da sua aprendizagem e divulgação primordiais, tendo-se conformado, ao longo dos séculos, como «o memorial do mais alto conhecimento ou reflexão», nas palavras de Eduardo Lourenço, ou como «o determinante lugar, onde, na perspectiva de Karl Jaspers, cada época histórica pode cultivar a mais lúcida consciência de si própria». E ninguém duvidará, por certo, de que ela continua a constituir o inderrogável e estratégico centro de criação da mais alta cultura e dos mais elaborados e complexos conhecimentos, imprescindíveis para dar resposta capaz à formação integral dos quadros superiores e aos desafios de desenvolvimento e de progresso. Em suma: ela é muito justamente valorada como o referencial histórico e o paradigma axiológico, à luz dos quais se desenham os traços porventura mais nobres, mais densos e mais fortes da identidade cultural de qualquer povo e país, configurando-se, desse modo, como a verdadeira alma e coração da Cidade.

Sobre ela, tem-se vindo a abater, com particular acuidade, ao longo deste último meio século, uma profunda crise, cujos mais percucientes sintomas se revelaram, de modo agónico e com singulares marcas simbólicas, no célebre “Maio de 68”.

Por toda a parte, o status da instituição universitária é então questionado e posto em causa, ao ponto de ela se haver tornado no privilegiado palco da acção contestatária dos movimentos estudantis, sobretudo no plano ideológico-político. De tal sorte que, depois do que se passou ao longo da década de sessenta, nada mais ficou como dantes.

Não cabe, aqui, proceder a uma analítica da complexa multicausalidade que esteve na génese dessa crise.

Destaco, todavia, sem qualquer intuito reducionista, duas das razões que me parecem ter tido, nela, especial influxo:

a) a deslocação/desvio da sua orientação e da sua dinâmica primigénias do pólo do otium para o pólo do negotium (na acepção clássica destes dois conceitos);

b) o fenómeno da explosão demográfica que atingiu os sistemas educativos, determinando o fim da “escola dos herdeiros”, com a consequente massificação, desqualificação e des-elitização da própria universidade, fenómeno esse, expressivamente figurado na metáfora da “invasão da catedral”…

Seja como for, a grande crise, de forte matiz ideológico-político, dos anos sessenta foi evoluindo para uma actual e mais complexa crise de fundo identitário, a três dimensões, no lúcido e fundamentado diagnóstico de Boaventura de Sousa Santos: crise de hegemonia, crise de legitimidade e crise institucional.

De tal modo que a universidade, hoje, mais do que a privilegiada instância onde (na base da inteira disponibilidade do espírito [otium] para crescer em todos os seus mais elevados potenciais capacitários e sapienciais) se promove e se processa a formação fundamental das elites e da intelectualidade, passou a ser perspectivada, em todo o mundo, como o universalizado lugar a que todo e qualquer cidadão, segundo as suas capacidades, tem o direito de aceder, em busca não só de mais saber, mas também (e talvez sobretudo…) de um mais credenciado estatuto para os desempenhos profissionais (negotium) e, assim, de um maior prestígio social, decorrente do cumprimento de um específico trajecto curricular, consignador da indispensável “licença” legitimadora de tais desempenhos.

Ou seja: na relatividade das coisas, o acesso ao ensino superior passou, nos tempos que correm, a estar para aquilo que foi, no século passado, o acesso à instrução primária, sendo que o «diploma de licenciatura», neste novo século e milénio, não significa muito mais do que significou, então, o «diploma da 4.ª classe».

Tenha-se presente, a este propósito, o facto de que, nos países mais desenvolvidos, a percentagem de acesso ao ensino superior por parte da população em idade escolar já atinge cifras da ordem dos 70%, quedando-se a nossa por cerca de metade.

À luz de tais dados e numa antecipação projectiva, poderá dizer-se, em registo figurativo, que a “escola básica do futuro” dá pelo nome de “universidade”.

Não é por acaso que uma das nucleares conclusões da “Conferência Mundial sobre o Ensino Superior” (decorrida em Paris, entre 5 e 9 de Outubro de 1998 e patrocinada pela UNESCO, sob a presidência de Federico Mayor, seu Director-Geral), se traduz no reconhecimento de que «o acesso a este nível de ensino constitui uma das questões fundamentais da Educação», com a reafirmação (na base da evocação de vários artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e, mais expressamente, do Pacto Internacional respeitante aos direitos económicos, sociais e culturais) de que «o ensino superior deve tornar-se acessível a todos, em condições de plena igualdade e em função das capacidades de cada um, por todos os meios apropriados, nomeadamente pela instauração progressiva do regime de gratuitidade» e de que «o alargamento e a democratização do acesso a este patamar de ensino passam a inscrever-se na perspectiva da educação permanente para todos».

(Excerto retirado e adaptado de: Fernando Paulo Baptista: Tributo à Madre Língua, Coimbra, Pé de Página Editores, 2003, 432-434)

Uma resposta to “”

  1. fpbaptista Says:

    Dos Professores…

    O PROFESSOR: O MÁGICO MAESTRO!…

    Um PROJECTO EDUCATIVO, concebido e elaborado à luz e à medida de um modelo de «Homem Culto», em sua mais funda, elevada e ampla expressão ontogenética, antropológica e axiológica, implica O PÚBLICO RECONHECIMENTO DOS PROFESSORES como OS GRANDES ESPECIALISTAS QUE SÃO (e que cada vez mais devem ser!) EM HUMANIDADE, e o seu constante e valorador tratamento como os fundamentais e insubstituíveis ENGENHEIROS-ARQUITECTOS-POETAS DO FUTURO QUALITATIVO DE QUALQUER POVO. Sem eles, nenhum país poderá ser, hoje, o polifónico território, onde harmonicamente se orquestrem o desenvolvimento e o progresso, a partir das matriciais componentes que potenciam e dinamizam o processo ascensional da hominização/humanização individual e colectiva dos seus cidadãos.
    De facto, é aos professores que está confiada, numa sequencialidade completiva que se pretende em estreita consonância com o sentir, o pensar e o querer da família e com os mais altos desígnios do País e do Planeta, a plasmagem/modelação da «matéria prima» que é a mais amorável, delicada e preciosa de quantas existem no Universo — as crianças e os jovens —, com seus potenciais de inteligência e de sensibilidade, com suas expectativas de desejo e de sonho…
    Essa plasmagem implica o recurso aos mais finos, exigentes e produtivos métodos e técnicas, ao mais subtil labor e sageza, no constante e íntimo «diálogo» com o Saber (com os saberes), num inextinguível e apaixonado acto de amor ao serviço do Ser (de cada ser). É O PROFESSOR, em suma, O MÁGICO MAESTRO da mais bela partitura que se pode compor e orquestrar para ser ouvida e escutada no silêncio expectante da Terra inteira: a Sinfonia do Universo na Polifonia de cada Homem!…
    Ora, uma TAL «MISSÃO» PRESSUPÕE A IRRECUSÁVEL ASSUNÇÃO POLÍTICA DE QUE NEM TODOS SERVEM PARA SER PROFESSORES, o que, em coerente consonância, significa a inadiável exigência da aplicação, pelos mais altos responsáveis do Sistema Educativo, de mecanismos da mais apurada selectividade e rigor, quer na crucial fase de recrutamento, quer em todas as fases da formação, profissionalização, desempenho de funções e progressão na carreira…

    Fernando Paulo Baptista

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